3 de fev. de 2009

As múmias do Llullaillaco

Esta é uma crônica que o jornalista Ari Peixoto escreveu sobre três crianças sacrificadas há 500 anos no topo de um vulcão. Muito interessante!!!

A primeira impressão é a de assombro. A gente se acostuma a imaginar múmias com bandagens dos pés à cabeça, sarcófagos, etc... Aí, encontra três crianças que foram sacrificadas há 500 anos e cujos corpos estão praticamente intactos! Difícil manter a boca fechada. Eu não consegui, principalmente por causa do estado de conservação, totalmente natural. Quem vê de perto, como eu vi, tem a nítida sensação de que, se tocar na múmia, ela vai despertar.

Há 500 anos, essas crianças saíram de Cuzco (Umbigo do Mundo, em quéchua), no Peru, e foram levadas para o topo do vulcão Llullaillaco, no norte argentino (em bom espanhol argentino, leia-se "Jujaijaco"), a mais ou menos 1500 quilômetros de distância.

O império Inca foi um Estado-Nação que existiu entre 1200 e 1550, quando os invasores espanhóis chegaram. Abrangia desde o norte do Equador até o noroeste da Argentina e o norte do Chile. Eram diversas nações e mais 700 idiomas diferentes, sendo o mais falado o quéchua (ou quíchua), que ainda é idioma corrente principalmente na Bolívia e no Equador.

A pé, cobrindo em média 25 quilômetros por dia, as crianças encararam com paciência e resignação aquela que seria a última viagem de suas vidas, em direção ao altar de sacrifícios. Para nós pode parecer chocante, mas na cultura Inca essas crianças eram preparadas para isso desde o nascimento. Todas vinham da elite incaica, tinham que ser perfeitas, sem defeitos físicos, e dotadas de uma beleza incomum. E é sempre bom lembrar que, de acordo com os preceitos locais, elas não morreriam; simplesmente passariam para o lado dos deuses e, de lá, olhariam pela comunidade a que pertenciam.

No alto da montanha sagrada, as crianças foram embriagadas com chica, bebida à base de milho, que existe até hoje – a diferença é que, naquele tempo, ela era feita de uma maneira, digamos, mais ortodoxa: o milho era mascado pelos adultos e a massa que surgia daí era cuspida num tacho, onde recebia aditivos naturais para acelerar a fermentação e ganhar um certo teor alcóolico. E foi assim, depois de beber muita chicha, já em coma alcóolico, que as crianças eram suavemente depositadas numa cova... e ali morriam rapidamente, pelo frio e pela asfixia.

Foram exatamente a baixa temperatura (em torno dos 20 graus negativos) e a ausência de luz os grandes responsáveis pela notável preservação dos corpos. Nenhum aditivo a mais, como faziam os egípcios ou os italianos, nas recém- descobertas múmias de Palermo.

Os arqueólogos argentinos que faziam parte da descoberta logo perceberam que, se não agissem rápido, o destino das múmias seria o exterior, principalmente os EUA. Por isso, criaram o Museu de Arqueologia de Alta Montanha, para abrigar a descoberta. As múmias são mantidas praticamente nas mesmas condições em que foram encontradas – ou seja, pouca luz e temperatura de 20 graus negativos. E, para evitar problemas, só uma é exibida por vez.

Sabe o que é mais legal de toda essa história? Os arqueólogos argentinos que entrevistei sabem aonde estão outras 30 múmias em igual estado de conservação, espalhadas pelo continente – mas, atendendo a apelos das comunidades indígenas, descendentes dos Incas, eles decidiram que vão deixar que elas permaneçam nas suas tumbas. Sem revelar a localização, claro. É uma demonstração de consciência do homem contemporâneo com relação ao passado da América do Sul.

Ari Peixoto

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